quarta-feira, 4 de março de 2009

É uma guerra de resistência, temos que segurar o manche e agüentar’, diz Maria Conceição Tavares

"Estamos diante de uma tempestade global. Não é apenas a violência que assusta; é, principalmente, o fato de que a sua origem financeira torna tudo absolutamente opaco no horizonte da economia internacional. Mente quem disser que sabe o que virá e quanto vai durar", diz, em entrevista à Carta Maior, 02-03-2003, Maria da Conceição Tavares.A economista, informa a Carta Maior, falará nesta quinta-feira no seminário promovido pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Conceição abre nesse dia a primeira mesa de debates do Seminário Internacional sobre o Desenvolvimento que acontece em Brasília. Inaugurado oficialmente pelo Presidente Lula, o seminário internacional convocou duas dezenas de intelectuais, autoridades e lideranças - do Brasil e do exterior - para um balanço daquele que já é reconhecido como o maior colapso da história do capitalismo desde 1929. A TV Carta Maior transmitirá ao vivo os debates, com cobertura completa das mesas programadas para a quinta e sexta-feira.Eis a reportagem e a entrevista.Pela primeira vez na história, o Brasil enfrenta uma crise mundial sem ter que carregar o setor público nas costas.“Veja bem”, diz Conceição quando perguntada sobre qual seria agora o foco principal de sua análise na exposição da quinta-feira, ”estamos diante de uma tempestade global. Não é apenas a violência que assusta; é, principalmente, o fato de que a sua origem financeira torna tudo absolutamente opaco no horizonte da economia internacional. Mente quem disser que sabe o que virá e quanto vai durar. Minha percepção mais clara é de que será uma guerra de resistência; e que o Brasil tem condições de segurar o manche, e agüentar”.Conceição não é propriamente uma poliana acostumada a distribuir cálices de bondades nos salões da política brasileira. Tampouco ganhou o respeito ecumênico que desfruta em círculos intelectuais e acadêmicos por irradiar otimismo panglossiano. A adversária temida e respeitada do conservadorismo nativo na verdade nunca poupou de sua metralhadora crítica nem o governo Lula, sobrertudo no primeiro mandato, quando a macroeconomia adotada pelo ex-ministro Antonio Palocci gozava unanimidade na mídia e no seu braço político-eleitoral, o tucanato.Um de seus ex-alunos diz que a garganta de Henrique Meirelles, o presidente do BC, ainda emite ganidos de dor quando a professora de 74 anos dardeja, sem piedade, a política monetária que dá ao Brasil o campeonato mundial de juro do planeta. “O que estou dizendo não é fruto de otimismo”, pontua essa admiradora confessa de Celso Furtado. “A luta será dura. Mas pela primeira vez na história, o Brasil enfrenta uma crise mundial sem ter que carregar o setor público nas costas. Isso é inédito: nesta crise o Estado não está afundado em dívida externa, para não dizer totalmente quebrado, como ocorreu nos anos 90. Significa mais do que não ter um peso morto; significa um Estado em condições de amparar o investimento, o emprego e o capital de giro da economia".A taxa de juro mais alta do mundo finalmente mostra para que serve: serve para ser corrigida agoraConceição brinca enquanto dispara sem dó: “Desta vez, temos ainda uma vantagem paradoxal; e aí devemos reconhecer o serviço prestado pela ortodoxia: há um enorme espaço macroeconômico para 'flexibilizar a política monetária’, como eles gostam de dizer”, ironiza a professora com um sorriso e aciona de novo o gatilho: “A taxa de juro mais alta do mundo finalmente mostra para que serve: serve para ser corrigida agora na crise. Basta que façam isso e o país já ganhará um substancial reforço na capacidade fiscal para implementar ações anti-cíclicas. Cada ponto a menos na taxa de juro reduz em uma dúzia de bilhões o custo da dívida pública”.A ex-deputada federal pelo PT listará no CDES algumas vantagens que distinguem o Estado brasileiro atual daquele pé-de-chumbo pró-ativo da era FHC, quando, ao contrário de hoje, ajudava a empurrar a economia para o buraco. Hoje, o governo tem fôlego financeiro suficiente para acionar a demanda e o investimento através de uma engrenagem de quatro patas: as políticas sociais; a nova política habitacional – que deve encomendar um milhão de unidades ao setor da construção civil; as obras do PAC – “que alavancam a conjuntura e corrigem as desigualdades da estrutura regional"; e as licitações da Petrobrás –“a Petrobrás, sozinha, meu filho, é uma nação; uma nação que nos dá auto-suficiência em óleo, o que não tínhamos nas outras crises; ao mesmo tempo mantém encomendas que podem sustentar faixas do parque industrial”.Mas, acima de tudo, a professora gosta de salientar uma diferença crucial em relação à carpintaria neoliberal dos anos 90, quando o Brasil bateu três vezes no guichê do FMI: “Hoje temos um tripé de bancos estatais revigorados, que cumprem papel estratégico reconhecido pela política econômica. Com o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal o Brasil pode, de fato, gerar contrapesos à contração do crédito internacional, propiciar capital de giro e investimentos com contrapartida de garantia de emprego. Basta ter determinação política”.Os dois maiores bancos dos EUA agonizam; baixas dessa magnitude não tivemos nem em 1929Conceição, porém, não minimiza as dificuldades dos dias que virão. “Sem dúvida o colapso financeiro internacional é dramaticamente mais sério que aquele de 29. A crise atual ainda não alcançou a proporção daquela, mas você tem o núcleo financeiro dos EUA carcomido, - veja bem”, pontua a professora didaticamente, “é o núcleo, os grandes bancos, não as franjas. Os maiores deles, o City e o Bank of América, praticamente agonizam. Baixas dessa magnitude não tivemos nem em 1929”, adverte com entonação diferente na voz.Conceição enxerga uma estatização branca em andamento no setor financeiro norte-americano; percepção corroborada pelo noticiário matinal da segunda-feira que informa um novo round na agonia da seguradora AIG. A maior seguradora do mundo ganhou o epíteto agora de maior prejuízo da história do capitalismo americano. Na segunda-feira, receberia nova transfusão de recursos do Tesouro, mais US$ 30 bi sobre anteriores US$ 150 bi que não bastaram para afastá-la da ladeira da liquidação.Conceição não considera que a política de socorro e mitigação pontual adotada por Obama seja suficiente para reverter a espiral que se espalha. “Ajuda pontual não permite ao governo intervir de fato nas instituições; os conselhos e acionistas mantém o comando; não deixam realizar prejuízos; a agonia se arrasta”. A conclusão que extrai dessa convergência entre colapso e hesitação ideológica é que teremos uma crise de longa duração, “uma guerra de resistência”. Conceição reporta ao exemplo japonês para justificar seu ceticismo. “Na crise do Japão, nos anos 90, o setor financeiro foi abalado; nunca se recuperou de fato. O resultado é o que estamos vendo hoje; a economia japonesa desaba porque não tem solidez na perna financeira. Sem essa perna fica muito difícil enxergar a luz no fim do túnel americano. A maior economia do planeta pode patinar por anos a fio”, vaticina.Minha dúvida é se a China, que até agora foi o grande comprador de títulos norte-americanos, continuará a fazê-loInúmeras incertezas se acumulam nesse horizonte de longo curso. Mas a principal delas, no entender de Maria da Conceição, argüi a sobrevivência da endogamia sino-americana que sustentou a expansão internacional pré-crise. “Sem crédito o capitalismo não sobrevive”, reitera a professora como que a martelar um avariável que não pode ser esquecida jamais pelos seus ouvintes. “A política norte-americana de socorro e mitigação gera déficits e desequilíbrios crescentes. Os EUA têm um poder quase ilimitado de emitir dívida para se financiar, mas é preciso que o mundo continue disposto a adquiri-la, como tem feito até aqui. Minha dúvida é se a China, que até agora foi o grande comprador de títulos do Tesouro, terá fôlego para sustentar esse papel”.Conceição não acredita que a China possa reciclar facilmente seu dínamo exportador para uma expansão calcada no mercado interno. “Eles já estão fazendo investimentos impressionantes na economia doméstica; não creio que exista espaço para ir além e assim compensar a perda inevitável do lado do comércio exterior. Daí a pergunta para a qual não tenho resposta: até quando terão condições de absorver títulos da dívida dos EUA?”O ativismo keynesiano de Obama ainda não marca a derrota definitiva do neoliberalismo; no Brasil isso será decidido em 2010A economista encerra com uma advertência política: “Nada do que estamos vendo configura, ainda, a derrota definitiva do neoliberalismo. É um passo. Mas não podemos festejar o defunto sob as ruínas dos mercados financeiros. O que vemos hoje é apenas luta pela sobrevivência; não há lugar para a ideologia na luta desesperada pela sobrevivência. O ativismo keynesiano de Obama, entre outros, é apenas isso, um recurso à mão, nada mais. Provavelmente, essa opacidade ideológica persistirá até 2010. No Brasil, então, será a hora da verdade. Serra se diz um desenvolvimentista - de boca, porque sua aliança preferencial é com os Democratas, cuja agenda dispensa apresentações. A sociedade brasileira terá que escolher o projeto e o arcabouço de valores para conduzir o país na reordenação pós-crise. Tomara que não recue” , conclui a professora Maria da Conceição Tavares.

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